terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

o crocitar do corvo

Olhos encovados espiavam-no pela fresta da porta. Ele os sentiu muito antes de ver - tinha acordado de um susto naquela noite suarenta, e o peso dos olhos vigilantes fez com que sua garganta se fechasse para protegê-lo de gritar. Seu grito alto, como um grito de corvo, engaiolava-se em sua garganta com tanta firmeza que ele podia sentir as penas escuras e engomadas, molhadas de saliva. Podia sentir o pássaro vivo, querendo crocitar, raspando o bico com violência, mas preso. Virou-se na direção da porta e encarou aquele único olho visível. Mesmo sem quase nenhuma claridade ele podia discernir com perfeição até a bolsa arroxeada de cansaço abaixo do olho, seus cílios curtos, sua pestana meio amarronzada e, principalmente, aquele olhar que só pode ser descrito como odioso.

Sentia o ódio se espalhando em um único traço na noite escura, direto e sem dúvidas colado aos seus olhos como se quisesse arrancá-los a violentos golpes. O menino continua congelado, incapaz e fraco. Pensa que se o dono dos olhos encovados quiser adentrar e arrancar-lhe os olhos por tê-lo surpreendido, ele nada poderá fazer. Com a frustração de sua fraqueza, o corvo em sua garganta se amaina e ele pode respirar com mais facilidade; ao poder respirar, abre a boca, mas não grita.

Num lampejo, os olhos encovados desaparecem.

O menino agora tem coragem. Ele sabe que o homem já saiu dali - poderia senti-lo se fosse caso contrário. Isso lhe dá forças. O menino sai da cama e anda pelo quarto com a ponta dos pés no chão e o mínimo ruído abafado por um grande tapete vermelho. Abre a porta em um único golpe rápido, espia pelo longo corredor e constata que está vazio.

Mesmo assim, todo aquele escuro, que não é cortado uma única vez por nenhum tipo de luz, o assusta. Faz seu coração disparar e sua mente parece escorregar um degrau abaixo, perto da fronteira da loucura. O suor corre-lhe como rios, encharcando sua roupa e fazendo-na grudar no corpo. Pequenos fios de cabelo em sua nuca estão arrepiados como se estivesse morrendo de frio, apesar do calor infernal. Seu corpo está em alerta.

O menino dá dois passos vacilantes na direção mais escura do corredor. Seu coração o atrai para aquela direção, mas também se retrai no peito, assustado e indefeso, quando o menino anda. Seus sentidos irracionalmente gritam perigos a respeito daquele escuro, mas o menino quer provar para si a coragem que não tem. Ergue o queixo e anda mais alguns passos.

Quando acontece, é muito rápido e vem de suas costas. Num instante apavorante, o menino foi arremessado para a frente e seu corpo está preso num outro corpo. Ele grita, grita como nunca em sua vida, expulsando de sua garganta corvos, gaviões e canários assustados. O corpo que o prende é pesado, suado como o seu, mas quando fecha uma das mãos em torno o pulso de seu inimigo o menino percebe braços finos, como se nem fossem providos de uma camada de pele.

Debatendo-se feito um louco, o menino golpeia avidamente o outro corpo enquanto sente sobre si uma pressão indescritível - como se sua própria alma estivesse-lhe sendo arrancada por seus poros. A luta que se desenrola é rápida e cheia de forças que ninguém entende. Quando dá seu último grito crocitante, já engasgado num sangue grosso e quente que parece vir de dentro de si mesmo, o menino pensa que os covardes muitas vezes vivem mais.

Tudo acaba em segundos.

Lá fora, na noite, um corvo voa um voo pesado. Suas penas parecem molhadas de sangue e saliva.

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