sábado, 12 de fevereiro de 2011

A torre cinza

Costumava existir uma torre acinzentada sozinha no mar, perdida por entre grandes rochas pontiagudas e muita água salgada, aparentemente sem nenhum propósito de vida ou existência. Mesmo assim ela estava lá, inabalável e segura, mesmo que os ventos fortes tentassem com ímpeto derruba-la e as ondas altas tentassem sem pudor demoli-la; não adiantava, a torre cinza, forte e calcificada, não se movia nem apenas um centímetro para direita ou esquerda, permanecendo sempre em sua posição original.

Ninguém sabia explicar como ela havia aparecido ali, quem a tinha construído ou como uma torre tão pequena conseguia resistir por tanto tempo exatamente no meio do oceano, mas também, não eram muitos que de fato conheciam a torre cinza, e os poucos que conseguiam ver a torre, só a conheciam a distância, pois chegar até ela era um feito impossível a qualquer ser humano.

Não havia uma forma de ultrapassar as pedras altas que circulavam a construção para chegar pelo mar, tampouco vencer o vento para chegar voando, então lá jazia a torre cinza, sempre única e misteriosa, talvez, as inalcançável. Um sonho para muitos, uma frustração para o resto, um fardo para ela mesma.

Do que valia para a torre ser forte e imponente se ninguém chegava perto? Do que valia, para ela, sobreviver a todos os obstáculos da vida sem dificuldade, já que não havia ninguém para lhe sorrir quando ela finalmente chegasse?

Do que valia existir sem ninguém?


Desproteja-se com suas rochas, desarme seus ventos e pinte suas cores. Livre-se do seu fardo enquanto você pode.
Shakespeare.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

o crocitar do corvo

Olhos encovados espiavam-no pela fresta da porta. Ele os sentiu muito antes de ver - tinha acordado de um susto naquela noite suarenta, e o peso dos olhos vigilantes fez com que sua garganta se fechasse para protegê-lo de gritar. Seu grito alto, como um grito de corvo, engaiolava-se em sua garganta com tanta firmeza que ele podia sentir as penas escuras e engomadas, molhadas de saliva. Podia sentir o pássaro vivo, querendo crocitar, raspando o bico com violência, mas preso. Virou-se na direção da porta e encarou aquele único olho visível. Mesmo sem quase nenhuma claridade ele podia discernir com perfeição até a bolsa arroxeada de cansaço abaixo do olho, seus cílios curtos, sua pestana meio amarronzada e, principalmente, aquele olhar que só pode ser descrito como odioso.

Sentia o ódio se espalhando em um único traço na noite escura, direto e sem dúvidas colado aos seus olhos como se quisesse arrancá-los a violentos golpes. O menino continua congelado, incapaz e fraco. Pensa que se o dono dos olhos encovados quiser adentrar e arrancar-lhe os olhos por tê-lo surpreendido, ele nada poderá fazer. Com a frustração de sua fraqueza, o corvo em sua garganta se amaina e ele pode respirar com mais facilidade; ao poder respirar, abre a boca, mas não grita.

Num lampejo, os olhos encovados desaparecem.

O menino agora tem coragem. Ele sabe que o homem já saiu dali - poderia senti-lo se fosse caso contrário. Isso lhe dá forças. O menino sai da cama e anda pelo quarto com a ponta dos pés no chão e o mínimo ruído abafado por um grande tapete vermelho. Abre a porta em um único golpe rápido, espia pelo longo corredor e constata que está vazio.

Mesmo assim, todo aquele escuro, que não é cortado uma única vez por nenhum tipo de luz, o assusta. Faz seu coração disparar e sua mente parece escorregar um degrau abaixo, perto da fronteira da loucura. O suor corre-lhe como rios, encharcando sua roupa e fazendo-na grudar no corpo. Pequenos fios de cabelo em sua nuca estão arrepiados como se estivesse morrendo de frio, apesar do calor infernal. Seu corpo está em alerta.

O menino dá dois passos vacilantes na direção mais escura do corredor. Seu coração o atrai para aquela direção, mas também se retrai no peito, assustado e indefeso, quando o menino anda. Seus sentidos irracionalmente gritam perigos a respeito daquele escuro, mas o menino quer provar para si a coragem que não tem. Ergue o queixo e anda mais alguns passos.

Quando acontece, é muito rápido e vem de suas costas. Num instante apavorante, o menino foi arremessado para a frente e seu corpo está preso num outro corpo. Ele grita, grita como nunca em sua vida, expulsando de sua garganta corvos, gaviões e canários assustados. O corpo que o prende é pesado, suado como o seu, mas quando fecha uma das mãos em torno o pulso de seu inimigo o menino percebe braços finos, como se nem fossem providos de uma camada de pele.

Debatendo-se feito um louco, o menino golpeia avidamente o outro corpo enquanto sente sobre si uma pressão indescritível - como se sua própria alma estivesse-lhe sendo arrancada por seus poros. A luta que se desenrola é rápida e cheia de forças que ninguém entende. Quando dá seu último grito crocitante, já engasgado num sangue grosso e quente que parece vir de dentro de si mesmo, o menino pensa que os covardes muitas vezes vivem mais.

Tudo acaba em segundos.

Lá fora, na noite, um corvo voa um voo pesado. Suas penas parecem molhadas de sangue e saliva.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

indo embora

O trem sacolejava e ia, cada vez mais rápido, cortando os trilhos molhados da chuva forte que caía e manchava as janelas com gotas velozes que impediam o homem de ver claramente o mundo lá fora. Agora cada vez mais longe, cada vez mais forte era a chuva, e ele estava pensando por que não tinha olhado para trás. Não que tivesse alguém ali na plataforma para dar-lhe um adeus, não que tivesse para quem olhar naquela plataforma, ele não tinha, mas poderia ver pela última vez aquela cidadezinha e dizer um "adeus" grande, com todo seu coração. Não tinha olhado porque dentro de si espreitava o medo de que, se olhasse, talvez não quisesse mais ir embora. Se olhasse para trás ia ter que pedir ao maquinista que parasse o trem, ia descer no chão de cascalho e iria voltar, voltar mesmo que seus dias o estivessem destruindo cada vez mais, iria voltar mesmo que não tivesse ninguém que lhe esperava, mesmo que não tivesse ninguém que quisesse vê-lo de volta...

Acendeu um cigarro e tragou fundo, sentindo o gosto amargo na garganta. Não gostava de fumar, mas o fazia, não só como vício, e sim porque era a única coisa que lhe tinha restado dos últimos dias. Quando se lembrava deles no trem, sacolejando, fumando e se sentindo sozinho, ele queria voltar imediatamente. Poderia tentar novamente em algumas semanas, quem sabe, mas não estava preparado ainda... Sua vontade de voltar, entretanto, não era proporcional à sua coragem. Ele se limitava a ficar ali, sentado com a mala em mãos, se lembrando.

Lembrava-se de como tinha sido o último mês. Ele passara a dormir sozinho no quarto de casal. Acordava infinitas vezes por noite, sempre assustado como se tivesse acordado com um estrondo, e ele sabia que aquele estrondo imaginário era o da sua própria consciência que o mandava ter coragem. Ele olhava para o lado vazio da cama de casal, se lembrava da mulher que dormira naquele lugar durante tanto tempo e que agora estava no quarto de visitas, tão sozinha quanto ele.

Deitado naquele quarto, num escuro opressivo e assustador, ele pensava se ela também se sentia sozinha, se tinha saudade de dormir na cama de casal, se tinha saudade de dormir com ele, se tinha vontade de voltar a dormir com ele na cama de casal que tinham escolhido juntos, no quarto que tinham construído juntos... Sentia-se terrivelmente sozinho dentro daquele quarto. Mesmo que ela estivesse logo no quarto ao lado, naquele quarto ele estava sozinho. 

Pensava em ir até o quarto dela (afinal, o apartamento era dos dois!), olhar pela fresta aberta da porta, e, se ela estivesse acordada, ele entraria e se sentaria na beirada da cama, desataria a falar tudo que tinha pra dizer e eles voltariam juntos para o quarto da cama de casal. E se não fosse assim, ele pensava, e se ela estivesse dormindo feliz com a distância entre eles, e se ela não acordasse nem uma vez por noite se perguntando o que fazia naquele quarto sozinha, e se ela estivesse feliz em estar naquele quarto? Ele não tinha coragem de descobrir se ela estava tão acordada quanto ele ou se dormia feliz. Ele nunca tinha aquela coragem e nunca teria, então voltava a dormir pensando que no dia seguinte tudo seria diferente.

Acordava bem cedo, com o sol ainda nascendo, e tratava de si mesmo com uma precisão cirúrgica. Tomava um bom banho quente, barbeava-se até ter o rosto bem liso, penteava o cabelo, vestia-se com uma calça jeans limpa e colocava a melhor camisa do guarda-roupa. Então sentava-se na sala com uma caneca de seu café amargo, abria as cortinas e via o sol agora já nascido, brilhando forte lá fora, e esperava que ela acordasse também, pensando que sorriria e falaria qualquer coisa que fizesse ela sorrir de volta. 

Ela quase sempre demorava horas para acordar, mas ele não se preocupava: ficava sentado ali, algumas vezes lia o jornal, outras vezes fumava um ou dois cigarros. Então de repente ela finalmente levantava. Ele ouvia os ruídos surdos que ela fazia enquanto trocava de roupa e arrumava o quarto, e, quando ela estava preparada para sair, ele montava seu melhor sorriso de bom dia e aguardava a passagem dela, pensando que naquela manhã certamente conversariam.

Ela passava taciturna. Não lhe olhava o sorriso e muito menos sorria de volta, e ele nada falava, só pensava que no outro dia ela acordaria de bom humor e eles falariam alguma coisa. Não desistia ainda: ouvia-a na cozinha, então ia até lá para dizê-la que o café estava como ela sempre gostava, e quando chegava lá ela não estava tomando o café que adorava - ela tomava leite gelado e comia uma fatia de pão, desprezando completamente a garrafa térmica coloria de café que repousava convidativamente na pia bem arrumada.

O homem sentia com isso um grande aperto no coração. Por que ela desprezava o café que ele tinha feito com tanto esmero? Ela sequer gostava de leite frio, e também não comia as torradas que adorava antes e que ele comprava para ela toda vez que ia ao mercado. Sentava-se à mesa, de frente para ela, e mirava-a com olhos preocupados que tentavam achar algo que pudesse falar.

Ele então pigarreava, pronto para falar. Quando abria os lábios a mulher se levantava, ainda sem olhar para ele, colocava a xícara e o prato na pia e saía porta afora. Para o trabalho? Para um passeio? Ele não sabia. Ficava sentado ali, de boca aberta, olhando inutilmente para onde ela estivera sentada, pensando que se talvez tivesse simplesmente falado logo...

Ele sai para trabalhar também, mas não desiste: pensa com firmeza que  no dia seguinte tudo dará certo. Não a vê mais durante o resto do dia, já que mesmo que volte para casa ao fim do expediente ela sempre aparece mais tarde ou aparece e em seguida sai.

Com o passar dos dias nota que ela olha com desprezo para as camisas que ele veste para impressioná-la, que analisa friamente a barba que ele faz todas as manhãs para ela achá-lo mais bonito, que rosna ao ver seus sapatos lustrados que ele lustra toda noite para se achar mais importante para ela. Engole pouco a pouco a idéia de que ela realmente não quer mais vê-lo. De que eles nunca vão conversar e que nunca voltarão a ser como eram.

É pensando nisso que finalmente decide: vou embora. Se demite do trabalho numa segunda feira, compra uma passagem de trem e volta para casa com um peso no peito. Sua passagem parece pesar cerca de cinco quilos dentro do bolso da camisa, e seu coração bate com tanta força que ele se sente machucado.

Mais tarde a mulher volta para casa também e ele está sentado na cozinha, lendo um livro, as malas já arrumadas dentro do quarto. Quando ela se senta no sofá para assistir televisão ele se adianta até ela, enche o peito e diz:

- Amanhã eu vou embora.

Ela finalmente olha para ele, finalmente depois de tantos dias. Ele espera ver naquele olhar qualquer vestígio de saudade, qualquer coisa que diga-lhe para ficar, espera ver um pouquinho de amor ainda ali, mas não há nada. Aguarda as palavras dela. Espera que ela lhe peça para ficar, ou que lhe pergunte por que vai, ou até que lhe pergunte para onde... mas tudo que ela diz é:

- Tudo bem. Pode me deixar seu endereço, se quiser, para eu poder lhe enviar suas coisas que eventualmente ficarão para trás.

Ele sente um aperto na garganta, sente que os joelhos estão quase fraquejando, que quer gritar para ela tudo que não teve coragem de dizer durante todo o mês, que não quer nada, que não quer ir embora dali, que quer fazer qualquer coisa para voltarem ao normal... O que diz é:

- Deixarei.

Ela assente com a cabeça e volta a olhar para a tevê, deixando-o parado ali, imenso em sua solidão. Ele decide encerrar a noite, vai para o quarto, deita-se na cama e espera conseguir dormir.

Cochila por algumas horas, nem sabe ao certo quantas, mas logo acorda no meio da noite escura. Senta-se na cama, inteiramente desperto, e novamente as opressões de estar sozinho naquela cama de casal lhe acometem. Ele vai embora pela manhã. Ainda tem algumas horas para ver se ela também está acordada, talvez possa naquela noite enfim dizer tudo que queria...

Se levanta e vai na ponta dos pés até a porta do quarto dela. Espia pela fresta que ela sempre deixa na porta, e vê o quarto com a iluminação da lua cheia que entra pela janela. Olha para ela, enrolada nas cobertas, o rosto límpido naquele escuro sendo suavemente atacado pelo vento de um grande ventilador barulhento. 

Ele olha para ela. Ela está dormindo com um pequeno sorriso no rosto. 

Ele pensa que ela pode estar sorrindo por um sonho, embora seu coração tenha congelado de tristeza, e pensa que ela pode acabar acordando mais tarde. Silenciosamente se senta no chão, onde ainda consegue ver o rosto dela, e ali passa o resto da noite acordado, esperando que ela acorde. Tem uma esperança frágil como um fino fio em seu peito.

As horas passam e ele permanece ali, sentado, estático, os olhos ardendo não sabe se pelo sono ou por algumas lágrimas passageiras. Não se move nem um milímetro durante toda madrugada - é só quando o sol entra por todas as janelas descobertas da casa que ele se levanta, limpa o rosto molhado e entra no banho.

Quando se apronta ainda faltam meia hora até a partida do trem. A estação fica a cinco minutos de caminhada. Ele sabe que ainda é muito cedo - faltam quarenta minutos para as sete horas, e ela só se levanta às oito e meia. Pega suas malas no quarto, caminha até a cozinha e num bloquinho de anotar recados telefônicos escreve o nome da cidade onde estará. Fica bem longe dali. Não põe um endereço porque não tem um, mas quando tiver mandará uma carta... 

Sai porta afora com as malas em mão, e caminha até a estação de trem sob um sol fraco que fraqueja lentamente até virar chuva uma chuva rala. Espera a chegada do trem tomando um café ruim num copo plástico, o coração apertado e pequeno dentro do peito. Não pensa na partida - lhe doeria ainda mais. Apenas aguarda.

Quando o trem chega ele entra, se senta num dos vagões sem ninguém e ali permanece até a partida, sem olhar para fora. Quando o trem sai, ele ainda não olha pela janela.


Quando retorna de suas lembranças, percebe que se agarra em sua mala de mão com força suficiente para esbranquiçar seus dedos. Os olhos estão fechados, o cigarro já se apagou há muito tempo e jaz caído no chão, os olhos vertem lágrimas que ele não conseguiu conter.

Limpa o rosto com a palma da mão e enche o peito de ar. Olha para fora da janela, para a paisagem que passa correndo, e pensa: um dia eu voltarei.

Mas nunca volta.