sábado, 27 de julho de 2013

não haverá trégua

Permanece sentado no sofá, como que preso por um encantamento divino, olhos parcos, pesados, chocados, sonâmbulos em livre-trânsito pelo espaço imútavel que o cerca. Desfalece, num escorregar infinto até o chão. Não faz nada, absolutamente mais nada que não seja sentir o resfolegar dos pulmões, ariscos, que são comprimidos no peito por um talho, violento e incisivo, de um sentimento que não sabe se é remorso, medo, ou a compreensão final de um amor verdadeiro. O próximo passo do destino está suspenso por uma corda. O tempo avança em silêncio, enquanto lá fora chove, faz um frio anormal, essa cidade que é sempre tão quente fica agora gelada. O talho no peito cresce, se ramifica, se desenvolve em centenas de pequenas rachaduras pelo corpo todo, e pústulas sangrentas de um violeta de vômito crescem, e viram bolhas, cheias de um líquido fedorento e dolorido. O corpo então é todo consumido daquela peste. A cabeça vertiginosamente como que dobra, triplica e por fim quadruplica seu tamanho, quente, como uma melancia gigante com seu interior aquoso derretido, fervendo. Precisa de um banho quente. Os olhos estão molhados antes mesmo que a água caia, e então o atinja na cabeça, no peito, derramando os olhos e absorvendo os sentidos com o seu calor. Chora um choro convulsivo, ressonante, que o dobra em dois, sacode seu corpo e regurgita a doença. Como foi que as coisas se complicaram tanto, meu Deus? Valho-me de simplicidade, me cubro, me arrasto, me transformo para nunca mais destruir, e, no entanto, me contemplam com a destruição final que não pode ser menos que a de duas almas absolutamente alheias e sem culpa, sem nenhuma culpa por sua dor que não fosse o gostar de mim, logo de mim, ah, Deus, tantas pessoas no mundo, tantas anseiam, tantas que choram e se contorcem em todas as noites precisando de uma pessoa que as ame, e no entanto não, me contemplam, a mim, com não uma mas duas almas serenas e maravilhosas que serão irremediavelmente destruídas. Não há escapatória, não há trégua: pelo menos duas almas morrem hoje. Se escolho por uma das duas outras, é a minha e não escolhida; se não escolho ninguém, é a minha e a das duas não escolhidas; se mantenho as duas, é a minha, a minha própria, que se destruirá e consumirá no seu ímpeto, lentamente, uma a uma essas duas almas, até que não reste nada de nós.
Precisa parar de mentir. Com urgência. Mas é impossível: a mentira salta dos lábios, e se expande, e se desenvolve até um infinito em que não é mais possível conter sua existência. A mentira é o próprio sentido. Não joga sem mentiras, não sabe atacar, ou se defender, sem mentir. Precisa do isolamento como é preciso que se isole uma partícula radioativa. Muda-se a cidade, o país, o ano e a década, mas não muda-se o fundamental, não muda-se esse defeito, não é possível que não saiba, que seja impossível, concentrar-se numa coisa assim que não se estenda a mais do que uma pessoa. Uma pessoa. Uma pessoa basta. Não são duas, ou três, ou oito; é apenas uma. Ah, meu Deus, como posso se a cada momento de minha vida outras almas se inserem, com outras necessidades, com outros desejos, em minha vida, mas sempre com uma única função, a de destruição total, aniquilamento absoluto, de si mesmas, como se vendo em mim uma partícula altamente destrutivas tivessem um desejo de suicídio.
O rompante é inevitável, e a água quente do chuveiro não pode curá-lo, como não podem os rituais e as preces a Deus, não, nada pode curá-lo, ser radioativo é o que você é, no seu íntimo, ser assim, crápula, miserável, sempre a ponto de esmagar, crocitar, é isso, suas partículas são todas assim e sua sina será sempre destruir alguém. Não haverá paz. Não haverá trégua.